14/12/2010

Carta Aberta




Não só mente o que fala contra sua consciência, mas sobretudo o que fala contra a sua inconsciência. E assim falais de vós no trato social, enganando o vizinho. Fala o louco: 'O trato com os homens deteriora o caráter, principalmente quando não o temos'. Um vai até o próximo porque procura a si mesmo; o outro porque se quisera esquecer. A sua malquerença com respeito a vós mesmos converte a sua soledade num cativeiro. Os mais afastados são os que pagam o vosso amor ao próximo, e quando se juntam em cinco, deve morrer um sexto. Não falo do próximo; falo só do amigo... 'Um só me assedia sempre excessivamente' ⎯ assim pensa o solitário. 'Um sempre acaba por fazer dois'. Eu e Mim estão sempre em conversações incessantes. Como poderia suportar isto se não houvesse um amigo? Para o solitário o amigo é sempre o terceiro; o terceiro é a válvula que impede a conversação dos outros dois de se abismar nas profundidades. Existem demasiadas profundidades para todos os solitários. Por isso aspiram a um amigo à sua altura. A nossa fé nos outros revela aquilo que desejaríamos crer em nós mesmos. O nosso desejo de um amigo é o nosso delator. E freqüentemente, com o amor, apenas queremos saltar por cima da inveja. E freqüentemente atacamos e criamos inimigos para ocultar que nós mesmos somos vulneráveis. 'Seja ao menos meu inimigo' ⎯ assim fala o verdadeiro respeito, o que não se atreve a solicitar a amizade. Se se quiser ter um amigo, é preciso também guerrear por ele; e para guerrear é mister poder ser inimigo. É preciso honrar no amigo o inimigo. Pode-se aproximar do teu amigo sem passar para o seu bando? No amigo deve-se ver o melhor inimigo. Com o teu coração, deves estar o mais próximo possível dele quando lhe opõe resistência. O que se não recata, escandaliza. Já viste dormir o teu amigo, para saber como ele é? Qual é então a cara do teu amigo? É a tua própria cara num espelho tosco e imperfeito. Já viste dormir o teu amigo? Não te assombrou o seu aspecto? O amigo deve ser mestre na adivinhação e no silêncio: não se deve querer ver tudo. O teu sonho deve revelar-te o que faz o teu amigo durante a vigília. Seja a tua compaixão uma adivinhação: é mister que, primeiro que tudo, saibas se teu amigo quer compaixão. Oculte-se a compaixão pelo amigo sob uma rude certeza; És escravo? Então não podes ser amigo. És tirano? Então não podes ter amigos. Durante longo tempo se ocultavam na mulher um escravo e um tirano. Por isso a mulher ainda não é capaz de amizade; apenas conhece o amor. No amor da mulher há injustiça e cegueira perante tudo quanto não ama. E mesmo o amor consciente da mulher oculta sempre, a par da luz, a surpresa, o raio e a noite. A mulher ainda não é capaz da amizade. Mas digam-me, homens: qual de vocês é, porventura, capaz de amizade? É, homens! Que pobreza e avareza a da vossa alma! Quanto dão ao seus amigos eu quero dar também aos meus inimigos sem me tornar mais pobre por isso. Existe a camaradagem. Tomara que exista a amizade.



por  ĐivƟ
txt zaratustra

Um comentário:

  1. O trato com os homens deteriora o caráter, principalmente quando não o temos

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